para uma arquelogia da arqueologia: algumas notas sobre uma reviravolta necessária nos pensamentos e nos procedimentos
Quando a arqueologia se constituíu nos finais do século XIX como formação discursiva, como “disciplina” científica, destacando-se da história da arte, por um lado, e da longa tradição de antiquarismo, por outro, isso foi um fenómeno ocidental e muito particularmente ligado ao estado-nação moderno (v. Thomas, Julian, “Archaeology and Modernity”, Londres, Routledge, 2004). Cada país procurou firmar as suas raízes na mais remota antiguidade e seus “testemunhos” mais ou menos míticos, quer greco-latinos, quer nacionais (estes sobretudo naqueles países que tinham ficado fora do âmbito territorial do império romano): mas o “movimento nobilitador e identitário” é o mesmo. Como outra face da moeda, as “ciências naturais” (geologia, biologia), o evolucionismo e a ideia de uma “história natural do homem”, aliadas à etnografia dos “selvagens” (ou “primitivos”, uma invenção ocidental que legitimou todos os colonialismos), impuseram a noção de uma pré-história comum a toda a humanidade. Aí a disputa foi menos pelos pergaminhos nacionais em termos de grandes feitos expressos em monumentos e obras patrimoniais, e mais em torno da “antiguidade” maior ou menor dos indícios do “progresso” (grau de hominização dos indícios fósseis, antiguidade da “arte rupestre”, pioneirismo em torno de “descobertas” técnicas e produtivas, etc., etc).
Neste quadro, bem conhecido, é interessante repensar o conceito de história, e em particular de pré-história, e, como sintoma, o próprio desinteresse que tem havido por parte da União Europeia em, ao contrário do que poderia ser de esperar, fazer da sua “pré-história comum” um elo de ligação entre povos, nações, estados. Porquê, por exemplo, esse estatuto de margem dos “pré-historiadores”, dos arqueólogos das “origens”?
O discurso, ou narrativa, da continuidade, com a teleologia implícita, e a con-fusão, inerente à história, entre antecedentes e causas (descrever é perceber, é explicar mas diferentemente das ciências do cálculo), ligados à procura das “origens”, da archè, em particular na nossa tradição greco-latina e judaico-cristã têm sido discutidos por numerosos autores.
A mim interessa-me tentar prolongar algumas questões suscitadas por Giorgio Agamben no seu texto “Arqueologia filosófica”, inserto no livro (cito a tradução francesa) “Signatura Rerum. Sur la Méthode” (Paris, Lib. Ph. J. Vrin, 2008, pp. 93-128, na linha de Nietzsche, Foucault, e outros, e convocando também o pensamento de Walter Benjamin (noção de “reactivação”) e de Jacques Lacan, e do que na sequência deles se tem pensado sobre a condição do ser humano. Sem esquecer Alain Badiou ou Slavoj Zizek.
A minha convicção é a de que lavramos num mito fundamental, e esse nosso mito ocidental (que, como outros produtos ideológicos, “vendemos” a todo o mundo) é o da história e do tempo “continuista”, cronológico, tal como o temos pensado, tanto do lado dos “reformistas” do estado social (hoje falido), defensores de uma “redenção” por passos, como dos “revolucionários” sonhadores de um “tratamento de choque” igualmente de cariz religioso, escatológico, mesmo que não assuma aspectos fundamentalistas e se procure integrar nos quadros parlamentares do chamado “estado de direito”.
A questão do evento, da sua imprevisibilidade, e das rupturas que se darão certamente numa civilização que parece já viver no apocalipse, no “fim do tempo”, como diz Zizek, eis o que me interessaria debater.
Tendo consciência de que estes considerandos são apenas um resumo de uma reflexão que julgo crucial e que tenho em curso (e que se expressou resumidamente na lição inaugural do ano lectivo que fiz a 13 de Outubro da FLUP intitulada “A Arqueologia e as suas Metáforas”).
Porto, 15 de Novembro de 2010
Vítor Oliveira Jorge
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