sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Breve reflexão sobre alguns problemas das arquitecturas pré-históricas




10ª Mesa-redonda de Primavera

“Terra: Forma de Construir”

FLUP, Março 2006

publicado no livro homónimo, Lisboa, Ed. Argumentum, 2006

Breve reflexão sobre alguns problemas das

arquitecturas pré-históricas

por

Vítor Oliveira Jorge

DCTP-FLUP


Abstract: This brief text raises some questions about the so-called “prehistoric architectures” and their interpretation. It is based in the author’s experience of the study of some “passage gaves” and monumental precincts of the north of Portugal since 1978.




“Arquitecturas pré-históricas” é uma designação problemática, para não dizer imprópria, como objecto de reflexão, apenas usada aqui por comodidade.

Na verdade, o conceito de “pré-história” aponta para uma narrativa explicativa da continuidade/descontinuidade do ser humano, ou, se quisermos, da “cultura”, em relação à “natureza”, o que levanta muitas questões. A dicotomia natureza/cultura, por um lado (tão posta em causa por um número crescente de investigadores), e a “narrativa da continuidade” que a história pressupõe (criticada por Foucault e tantos outros autores), por outro, seriam temas intermináveis de debate.

Para simplificar (e passando também por cima da controvérsia em torno da noção de “sociedade”), por “sociedades pré-históricas” entendemos comunidades outras, que viviam na oralidade, baseadas na memória e numa certa estabilidade (mais aparente que real, mas de qualquer modo com ritmos de mudança muito diferentes dos nossos) escorada na atribuição de papéis sociais conforme o parentesco, o sexo, a idade, as relações de proximidade/vizinhança, e nas quais não havia um centro emissor de poder, formal, estabilizado, ou mesmo hereditário. Neste sentido, quase todas as comunidades e as formas de sociabilidade humanas foram “pré-históricas”.

Arquitectura é a “arte” de transformar o espaço numa rede de lugares e de trajectos significativos para as comunidades que os habitam ou neles circulam, através de materializações (por acrescentamento e/ou ablação) mais ou menos intensas. Se a entendermos isoladamente, como uma realidade trans-histórica, e portanto historicizável, divisível em “fases”/estilos (como em geral fazem as vulgares “histórias da arquitectura”), o conceito perde o interesse, ou cai no lugar-comum.

Introduzir “distinções” no espaço (arquitectura) e nos regimes de sociabilidade (estatutos dos indivíduos, grupos, entidades “políticas”) é uma questão evidentemente fundamental, na medida em que toda a “sociedade” é um sistema de distribuições de “poder” instaladas num espaço. Perdoe-se-me o esquematismo destas afirmações devido à brevidade do texto.

Em particular, as “arquitecturas pré-históricas” constituem portanto um campo apenas muito genericamente definido, com fronteiras esbatidas, que, visto à escala mundial, exigiria enciclopédico tratado. Está quase tudo por sistematizar a nova luz. Esse é um campo de curiosidade geral, ou de interesse, do autor destas linhas. O seu domínio “académico” de especialidade (tema de doutoramento e agregação na UP) são as arquitecturas pré-históricas do Norte de Portugal durante o IV, III e II milénios antes de Cristo.

Mas, mesmo aí, uma restrição se impõe: a sua base de experiência (que em arqueologia é um misto de prospecção e de escavação) é, apesar de todo o esforço, e dos trinta anos transcorridos, muito restrita: trabalho no Campo Arqueológico da Serra da Aboboreira (distrito do Porto) entre 1978 e 1990; investigações pontuais em Castro Laboreiro, Melgaço (distrito de Viana do Castelo) (de 1992 a 1994); e co-direcção das escavações de uma colina monumentalizada, em curso, desde 1998 (Castanheiro do Vento, Vila Nova de Foz Côa, distrito da Guarda). Paralelamente, o autor pôde participar de forma mais ou menos exaustiva em trabalhos de outros colegas, nomeadamente de Susana Oliveira Jorge (DCTP-FLUP), desde os anos 80, principalmente na própria Serra da Abororeira, nas regiões de Chaves e Vila Pouca de Aguiar (distrito de Vila Real) e no sítio de Castelo Velho de Freixo de Numão, em Foz Côa.

Essas experiências, unidas a 33 anos de docência e estudo, e a visitas a sítios arqueológicos estrangeiros, permitem talvez formular algumas questões (e o modo da questionação tem sido o preferido pelo autor, interessado mais pelo que não sabe do que pelo que já sabe) que eventualmente interessem a arqueólogos e arquitectos, cujo trabalho interdisciplinar tanto se imporia. São simples notas, escritas ao correr do teclado e do raciocínio, no intervalo de escavações.

Algumas tem já sido afloradas em trabalhos anteriores, nomeadamente em livros, onde se pode encontrar uma bibliografia mais exaustiva (*). Aqui irão ser brevissimamente expostas sob a forma de esquema, ou conjunto de tópicos. O leitor dará o devido desconto ao esquematismo e carácter por vezes assertivo próprios de um tal esquema, que num trabalho maior se diluiriam. Por outro lado, muito do que hoje sabemos é apresentado sob a forma negativa, ou seja, a extensão do nosso conhecimento procede também aqui por descarte, por ablação (eliminação do inverosímil), e não por acumulação ou acrescento, no sentido positivista, como se se tratasse de juntar as peças de um “puzzle” (nostalgia infantil da totalidade).

- a arquitectura pré-histórica não partia de um esquema, programa, ou projecto “feito” ou concebido primeiro no papel ou na mente. Construir não era “erigir para fazer lá coisas”. Construir (incluindo o destruir o o abandonar) era uma extensão de outras actividades, uma forma, entre muitas, de dar sentido, orientação, à acção colectiva;

- construir não era domesticar uma suposta natureza externa, era procurar diversificar nichos dentro dessa “natureza” (conceito nosso) onde as sociabilidades se exercessem e adquirissem um mínimo de estabilidade que permitisse a sua reprodução e a própria sobrevivência;

- construir não era fazer só de uma vez um edifício inteiro, mas ir fazendo; isso não significa que certas construções não conhecessem fases de maior actividade, seguidas de outras fases de certa “paragem”, tanto ao nível do ano, como ao longo de uma vida humana, como trans-geracionalmente;

- este problema das “fases” de estabilização física dos lugares (períodos em que aí se não exercia tanta actividade transformadora à escala do sítio) “versus” a de momentos de maior “input” de energia/esforço/acção concertada é dos mais interessantes e difíceis que a arqueologia tem de resolver;

- construir não era utilizar inertes providos de qualidades físicas para os incorporar em novas estruturas. Construir (como noutras acções) era transformar: ir buscar a muitos lados “coisas” (pedras, argilas, água, madeiras, ramos, artefactos portáteis, etc.) prenhes de conotações;

- Construir era mudar a relação espacial e estrutural das coisas: era unir num espaço o que estava disperso por muitos espaços; era escolher de uma grande diversidade de opções; era essencialmente um modo de viver como comunidade;

- a lei do menor esforço, da utilização de materiais próximos, da “pura funcionalidade” (ideias do presente) são ecrãs que não nos permitem ver como estas comunidades poderiam conceptualizar o espaço e viver imersas nele, nas suas variadíssimas qualidades disponíveis para a acção humana;

- por “qualidades” entende-se aqui um misto do que hoje denominamos funcional e do que designamos simbólico. Todo o universo humano é constituído por qualidades, quer dizer, características das matérias, que iam desde a a sua resistência, formas de interagir com elas, tacto, cheiro, peso, etc. Estamos a falar de um universo conotativo (e não meramente denotativo), onde tudo são signos, cada coisa aponta para outras e insere-se num sistema de significações;

- este sistema de significações não é um elemento a “priori”, mas um dado negociado permanentemente. e portanto plástico, se bem que podendo ser temporariamente estabilizado por “tradições”. As tradições (traduzidas ao nível da arquitectura por “estilos”, por exemplo) são sempre uma forma de os grupos se entenderem sobre o que não vai mudar por um tempo, são uma forma de tentar estancar o tempo; mas como sabemos as tradições mudam e criam–se, sedimentando-se por vezes com certa rapidez;

- construir uma habitação ou um abrigo teria de ser diferente de construir um espaço destinado a ter uma conotação mais abrangente ou colectiva. Nesse sentido, as chamadas necrópoles megalíticas, os recintos liticos, os sítios delimitados por fossos e/ou muros, as colinas monumentalizadas (como Castanheiro do Vento), etc., seriam uma forma das comunidades, pela acção concertada e sujeita a formas de poder difuso e lideranças/obediências (estatutos) incorporados, se construírem e desconstruirem a si próprias;

- a monumentalidade, a padronização nas formas, a aceitação colectiva de “normas” podiam ir a par com formas de liderança e com diferenças de estatuto ainda relativamente tênues;

- O não-dito e o subentendido são sempre mais importantes do que o verbalizado ou expresso; e aqui estamos perante expressões de uma prática que se reproduzia a si mesma pela acção no mundo real;

- em Castanheiro do Vento, por exemplo, observamos como havia regularidades no sistema de deposição das coisas, no entramado que a arquitectura constituía, e que não era necessariamente para ser visto, muito pelo contrário;

- notamos regularidades adentro desse sítio, que em certos casos confirmam as observadas em Castelo Velho, noutros as completam. Por exemplo: estas colinas monumentalizadas eram providas de redutos centrais mais elevados, rodeados de anéis concêntricos (o que também se observa em sítios da Estremadura portuguesa, do Sul de Espanha, etc.);

- A densa acumulação de estruturas menores nos “espaços livres” deixa adivinhar quase um sistema de “favos”, ou aglomerações de volumes, com uma infinidade de circuitos possíveis pelo meio, que tanto se podiam fazer como desfazer, dada a facilidade com que os embasamentos de xisto e as superestruturas de argila seriam susceptíveis de serem remodelados;

- a importância dos limiares não pode ser esquecida. Se esses limiares, ou barreiras (muros) continham células (à maneira das câmaras dos dólmens de corredor de câmaras múltiplas), a que chamamos convencionalmente “bastiões”, estes estabeleciam a possibilidade de vincar a importância desses limiares, associando-os à deposição de coisas no seu interior;

- claro que as passagens também seriam importantes limiares, quer abertas, quer fechadas, tanto mais que a chamada por nós paisagem estaria em parte invisível no interior dos recintos, tornando “críticos” os pontos de observação;

- os “bastiões” assumiam assim (como tudo nestes sítios, aliás...) uma polivalência notória. Vistos de fora, eram protuberâncias dos muros, observáveis de longe, espaçadamente distribuídas. Identificavam um “estilo de construir”, provavelmente com os seus telhados cónicos contrastando com a linearidade e carácter plano do topo dos muros. Observados (vividos) de dentro, seriam câmaras, ou “cápsulas” protegidas, que continham coisas, as quais estavam cuidadosamente ligadas à trama geral do sítio, das comunidades que permanentemente o fabricavam (fazendo elas mesmas parte dele pela sua presença física);

- não é de descartar que as várias fracções da comunidade que contribuíam para a manutenção das acções nestes lugares especiais estivessem ligadas a partes dele, e nomeadamente que a circulação de coisas no interior dos recintos fizesse parte de um complexo agenciamento/negociação de estatutos, quer dizer, de identidades e de diferenças;

- a maior parte do que se encontra nestes complexos monumentais foi trazida de fora (argila, água, ramos, etc.) e, mesmo ao nível dos objectos portáteis (vasos, objectos de pedra polida, elementos de moinhos manuais em granito, etc.) muitos ocorrem já “inutilizados” (para usar uma linguagem actual), ou seja, em posição secundária;

- é muito verosímil a hipótese de que tais elementos viessem de pontos diferentes do território e pudessem ser acoplados nestes complexos como forma de simbolizar (de fixar temporariamente pela acção) o próprio colectivo, se não mesmo a realidade do cosmos;

- isso, a acontecer, significava que tal colectivo estava numa fase de afirmação, de constituição identitária, ou seja, que se fabricava como ficção necessária à sobrevivência no próprio acto de permanentemente modelar e remodelar os materiais e os espaços;

- a padronização, que se nota em Castanheiro do Vento nos mais pequenos elementos, desde as pedras/lajes em cunha (por vezes muito pequenas) colocadas junto aos embasamentos, até aos grandes fragmentos cerâmicos aí insertos, ou a inclusão de percutores em quartzo, aos milhares, nos interstícios dos muretes, etc., revela uma vontade de ordem, de regularidade;

- essa ordem, aliás extensiva a cores e texturas das pedras usadas nos contrafortes em embasamentos, e dos artefactos portáteis, como por exemplo pequenas placas afeiçoadas intencionalmente, etc., etc., mostra uma rica cosmovisão, cheia de conotações, onde o diálogo dos seres humanos com o mundo seria constante;

- talvez que estes sítios fossem operadores desse diálogo a uma escala colectiva, e portanto elementos constitutivos de uma vivência comunitária que permitisse a negociação entre indivíduos, grupos, comunidades, à escala regional e trans-regional;

- é indubitável a existência de elites e a capacidade de estabelecer contactos a distância, articulando vastas regiões;

- resta saber, entre muitas coisas, como se relacionavam estas “cabeças de territórios” com os grandes acidentes geomorfológicos. Seriam estes últimos que marcariam os limites de “territórios” (conjunto de colinas de que o alto da Senhora do Viso, para leste de S. João da Pesqueira, seria o ponto culminante, por exemplo), ou antes, o seu centro? Ou estaremos de novo a entrar num campo perigoso de dicotomias, sendo que as fronteiras entre populações eram difusas?

- Quase tudo está por saber, neste ramo do conhecimento como em qualquer outro. Resta-nos conviver com esse maravilhoso desconhecimento, substituindo o regime do dogma pelo regime da questionação, e o sistema do indivíduo iluminado pelo da construção colectiva, pela aprendizagem em comum, que dê também lugar aos contributos individuais. Repetindo nos sítios pré-históricos o mesmo problema de outrora: a luta constante pelo estatuto, pela identidade e pela diferença, pela distinção.

Porto, 23.7.06

(*) Ver, por exemplo:

Projectar o Passado: Ensaios sobre Arqueologia e Pré-história (Lisboa, Ed. Presença, 1987); Arqueologia em Construção: Ensaios (Lisboa, Ed. Presença, 1990); Arqueologia, Património e Cultura (Lisboa, Inst. Piaget, 2000); Olhar o Mundo como Arqueólogo (Coimbra, Quarteto, 2003); A Irrequietude das Pedras. Reflexões e Experiências de um Arqueólogo (Porto, Afrontamento, 2003); Vitrinas Muito Iluminadas. Interpelações de um Arqueólogo à Realidade que o Rodeia (Porto, Campo das Letras, 2005); Fragmentos, Memórias, Incisões. Novos Contributos para Pensar a Arqueologia como um Domínio da Cultura (Lisboa, Colibri/IELT, 2006). Ver ainda, por exemplo, Jorge, S. O., O Passado é Redondo. Dialogando com os Sentidos dos Primeiros Recintos Monumentais, Porto, Afrontamento, 2005, e Jorge, V. O. et al. (eds), Approaching “Prehistoric and Protohistoric Architectures” of Europe from a “Dwelling Perspective”, Porto, ADECAP, 2006.

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